Depois de “Ama-San”, sobre três mulheres de gerações diferentes que mergulham em apneia e vivem numa pequena vila piscatória japonesa, e “Amor Fati”, onde ia de encontro a retratos de casais, amigos, famílias e animais com os seus donos, que partilham a intimidade dos dias, a portuguesa Cláudia Varejão entra em território onde realidade e ficção se encontram em harmonia na sua mais recente longa-metragem, “Lobo e Cão”, vencedor da Giornata del Autori do Festival de Veneza.

Coming-of-age sediado em território açoriano, este gesto cinematográfico de resiliência e homenagem à comunidade queer açoriana acompanha de perto uma jovem, Ana (Ana Cabral), e o seu melhor amigo, Luis (Ruben Pimenta), ambos a atravessarem uma jornada de crescimento pessoal e definição sexual, num local onde o binarismo (mencionado como uma prisão), associado às fortes tradições religiosas, dita à partida os papéis para homens e mulheres na sociedade.

Filmando esta viagem de descoberta e amadurecimento, onde surgem agressões sociais ao comportamento de Luís (um “paneleiro” a quem só faltam mamas, como chega a ser apelidado na escola), onde um estranho sentimento de culpa permanece em Ana pelos desejos que tem (uma confissão numa Igreja é um momento particularmente forte), além das inúmeras limitações ao futuro de quem permanecer na ilha (agricultura, pesca, turismo ou até tráfico de droga parecem ser as únicas oportunidades com futuro),  “Lobo e Cão” explora a dicotomia entre expetativas e ambições, numa busca incansável mas nunca gratuita de encontrar espaço para outras formas de ser, viver e existir.

E desde os primeiros minutos, onde São Miguel (a maior ilha do arquipélago dos Açores) é apresentado em comparação à anatomia do cérebro humano, percebemos que os sonhos e desejos de uma geração de jovens são maiores que aquelas que que cabem na ilha (e até no país, convenha-se), com o legado e as expetativas em seu torno (casarem, terem filhos, uma casa e um emprego) a cercarem os dois miúdos num sentimento de incumprimento. Livre ou domesticado? Transgressão ou assimilação? Lobo e Cão… 

E isso mesmo é explícito claramente quando Luís é presenteado com um terço que sente não estar habilitado de carregar, ou quando é violentamente confrontado pela sua aparência orgulhosamente não-binária numa procissão.  Por outro lado, é uma jovem que vem do Canadá, Cloé (Cristiana Branquinho), que serve de gatilho para a tomada de consciência de Ana e a sua “viagem” além do que lhe está predestinado, num cruzamento ao que Carlos Lobo explorou recentemente, de forma menos intensiva e incisiva, em “Aos Dezasseis”, e João Nicolau em “John From”, na sua transformação de um local encerrado (Telheiras) num libertador espaço onírico (Ilha do Pacífico).

Por estas razões, pelo sentido estético que vai além do realismo e explosões verité, e pela maturidade e ternura para com as suas personagens e o tema, “Lobo e Cão” revela-se uma bela continuidade ao trabalho que Cláudia Varejão tem feito com o seu cinema, onde inclusão e expansão do predefinido sempre gritam mais alto que qualquer ruptura.

Pontuação Geral
Jorge Pereira
lobo-e-cao-uma-historia-de-amadurecimento“Lobo e Cão” explora a dicotomia entre expetativas e ambições, numa busca incansável mas nunca gratuita de encontrar espaço para outras formas de ser, viver e existir.